Hoje lembrei daquele menino, o Aylan.
Lembrei do refugiado, do órfão, da vida que não será vivida pelo descaso de um coração egoísta.
Hoje lembrei daquele grupo de crianças perto de Pirituba e da conversa que tive com uma delas:
– Tia, não esquece de orar pelo meu pai quando você orar pela sua família.
– Claro, minha flor. E o que devo pedir?
– Que ele volte pra casa, tia. Faz tempo que a gente não o vê e tá difícil pra minha mãe.
– E são só vocês duas?
– Não, tem mais quatro irmãos. Mas tia, só ora pra ele ficar bem, porque eu não sei onde ele tá. Agora me deixa pedir pra moça do bar as cadeiras pra gente começar o culto. Fica aqui, não entra não. Eu resolvo!
Ela não tinha mais do que 10 anos.
Me lembrei do menino que me pediu uma latinha de refrigerante uma vez, e que dividiu a latinha com mais três dos seus.
Me lembrei da vida dilacerada, arrebentada, minimizada a pó.
Sem dignidade, sem dó.
Cheia de orfandade, de nó.
Hoje eu me olhei no espelho e vi olhos de melancolia.
Vi um rosto cheio de hipocrisia.
Se a minha espiritualidade não serve para mudar a vida do outro, então ela não serve para nada.
Se não serve para servir, não me serve no corpo também.
Se não serve ao meu irmão que é diferente de mim, pensa diferente de mim e vive diferente de mim, então também não serve para mim.
Não dá mais para viver assim, como se só a minha vida existisse.
Se Cristo vive em mim, uma boa notícia deve chegar: essa notícia é o pão na mesa, a roupa no corpo, a educação digna, a família reunida na sala. É a criança parando de morrer no tiro e sendo perdida para o tráfico e para a prostituição.
Se Cristo vive em mim, esse mundo há de entender que existe uma salvação.
Hoje me lembrei daquele menino, o Aylan.
E sua imagem ficou gravada dentro do meu coração.